quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A nova cara da justiça


Eles enfrentaram uma maratona de estudos e concursos para ter o direito de fazer justiça


Sofia Cerqueira

André Valentim/Strana
O promotor Rômulo (à esq.), 25 anos, a defensora Gabriela, 29, e os juízes Rosana, 27, e Dario, 29: poder jovem no Judiciário carioca
A audiência aconteceu na 14ª Vara Criminal. Rosana Albuquerque França, sentada na cadeira principal, sobre um tablado, tinha a seu lado um promotor. À frente, o réu, o advogado de defesa e a testemunha, uma senhora que presenciara um crime. A testemunha permanecia em silêncio, apesar das perguntas de Rosana. Ela então advertiu: "Na qualidade de testemunha, a senhora é obrigada a falar o que sabe, sem omitir nenhum aspecto". Perplexidade da testemunha. "Mas ela é a juíza! Jamais imaginaria, tem a idade das minhas netas", desculpou-se. Rosana, 27 anos, é uma das mais novas magistradas do Tribunal de Justiça do Rio. Ela pertence a uma turma que, assim que deixa a faculdade, enfrenta nova maratona de estudos, destaca-se em concursos disputadíssimos e está mudando a cara da Justiça carioca. Entre 1.542 candidatos inscritos no concurso de que Rosana participou, 54 foram aprovados. Deles, 38 tinham menos de 30 anos. Na Justiça Federal há juízes com 25. O rejuvenescimento da Justiça não se restringe aos juízes. No Ministério Público estadual, dos 67 promotores em início de carreira, 53 têm entre 25 e 29 anos. Existem ainda procuradores da República com 27 anos e defensores públicos com apenas 23. Estabilidade e bom salário – um juiz estadual iniciante tem rendimento bruto de 18.000 reais e um federal, 19.000 – estão entre os principais atrativos. De acordo com a OAB-RJ, dos cerca de 5.500 advogados despejados no mercado carioca por ano, pelo menos 75% buscam um concurso público. "Sou um entusiasta de jovens na carreira. Chegam sem vícios, com grande capacidade intelectual e muita energia", diz o desembargador Sérgio Cavalieri Filho, presidente do TJ-RJ.
 
André Valentim/Strana
Octavio, da OAB: críticas à arrogância
Depois de ultrapassarem a difícil peneira dos concursos, esses jovens desembarcam em uma realidade ainda mais complicada. Deparam com uma Justiça atravancada e freqüentemente tida como morosa e leniente. E enfrentam de causas simples a processos que podem mexer com a população de uma cidade, envolvendo casos de extrema violência e, em algumas situações, quantias que chegam a bilhões de reais. "Além do conhecimento teórico, a gente chega com vontade de mudar. Sonha em contribuir para uma Justiça mais ágil e efetiva", diz Rosana, que tem um ano de magistratura. Lotada na 2ª Região (Niterói e São Gonçalo), ela já atuou em varas cíveis e criminais e em juizados especiais. Pilhas de processos não faltam. Segundo pesquisa do TJ-RJ, há um juiz para cada 70.000 habitantes. Um em cada quinze habitantes do estado deflagra uma ação penal, e um em cada dez, uma ação cível. Os dados mostram ainda que, em 2005, 97% dos processos que entraram no tribunal foram julgados. Um grande avanço se comparado com a pesquisa do Ministério da Justiça que revela que no Rio, em 2003, do total de processos que deram entrada só 46% foram julgados. Naquela época, o estado ocupou o 19º lugar no ranking do ministério (veja outros dados da pesquisa no quadro). "O jovem tem tendência a inovar, a fugir do ranço do serviço público", afirma Dario Ribeiro Machado Júnior, 29 anos, juiz substituto da 5ª Vara Federal no Rio. Mas reconhece que existem entraves. "Há leis obsoletas, que possibilitam inúmeros recursos e atrasam excessivamente um processo", diz. Entre cerca de 1.500 candidatos, Dario foi um dos trinta aprovados no concurso para a magistratura federal em 2002. Com quatro anos de experiência, já bateu o martelo na distribuição de royalties de petróleo, determinou que o governo federal fizesse concurso para a contratação de médicos para o Hospital Geral de Bonsucesso e obrigou a União a comprar uma válvula e a acelerar a operação de um paciente com a vida em risco, internado no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (Fundão). Para fazer cumprir as sentenças, já se viu obrigado a fixar multas e ameaçar uma das partes de prisão.
 
André Valentim/Strana
Patrícia, procuradora da República: casos envolvendo 5 bilhões de reais
 
 
André Valentim/Strana
Juíza Rosana: dois anos só estudando até passar no concurso
Mas jovens com menos de 30 anos têm maturidade para tanto poder? A discussão é interminável. "Se, por um lado, têm preparo técnico e carga teórica, por outro, falta experiência", diz o desembargador Paul Erik Dyrlund, presidente das comissões organizadora e examinadora dos concursos para a magistratura federal da 2ª Região (Rio e Espírito Santo). "Já posso até ter verificado casos de inexperiência, mas nunca tive problemas de corrupção entre jovens magistrados", afirma Sérgio Cavalieri. O procurador-geral de Justiça do Rio, Marfan Martins Vieira, é outro defensor da causa. "Os jovens chegam aqui com cabelo na venta, cheios de garra", avalia. O presidente da OAB-RJ, Octavio Augusto Brandão Gomes, vê com ressalvas a questão. Para ele, deveria ser fixada a idade mínima de 30 anos para certos cargos. "Chegam à OAB várias reclamações contra juízes novatos. Sabemos que alguns, por imaturidade ou inexperiência, se fecham nos gabinetes ou adotam postura autoritária e arrogante", diz Octavio. Hoje, para prestar concurso para magistratura ou promotoria, é preciso ser bacharel em direito e ter exercido três anos de atividade jurídica após a colação de grau. As regras têm mudado ao longo dos anos. "Quando fiz concurso, era exigida a idade mínima de 25 anos para o magistrado", lembra Marco Aurélio Bellizze, empossado em 1990, com 25 anos cravados, então o mais novo juiz do Rio. Em 2000, quando já tinha caído a exigência, a carioca Luciana de Oliveira Leal, com apenas 21 anos, virou a mais jovem juíza do país. "Não é a idade que distingue um bom juiz. É sensibilidade e equilíbrio", diz Bellizze, promovido em 2004 a desembargador, com 40 anos. Até então ninguém no estado alcançara o cargo tão novo.
 
Felipe Varanda/Strana
Cepad, no Centro do Rio: salas lotadas no curso preparatório para concursos na área jurídica
Antes de defender, acusar ou condenar em nome da lei, quem passa num concurso faz curso preparatório. Dependendo da instituição, dura de um a quatro meses. A estabilidade na Justiça é alcançada após dois anos. "Os novos magistrados são supervisionados por desembargadores aposentados e juízes", afirma o desembargador Paulo Roberto Leite Ventura, diretor-geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio (Emerj), um dos mais conceituados cursos preparatórios da carreira no país. "Cobra-se conduta irrepreensível. Já vi uma pessoa não obter a vitaliciedade por problema comportamental", conta. Os principiantes ficam em varas do interior ou como substitutos na capital. O grau de responsabilidade, porém, não é proporcional à pouca idade ou tarimba. Jovens juízes, promotores e defensores assumem qualquer caso que tramite na vara. O promotor Rômulo Santos Silva, 25 anos, um dos mais novos dos 57 aprovados entre os 3 100 candidatos do penúltimo concurso do Ministério Público Estadual, enfrentou uma prova de fogo já na primeira semana. Designado para o Tribunal do Júri de São Gonçalo, interrogou um policial arrolado como testemunha do assassinato de seis pessoas de uma família. "No início, tanta violência choca", diz. Hoje, no interior do estado, as responsabilidades não diminuíram. Com a insígnia do Ministério Público na lapela – ele já foi confundido com estagiário –, Rômulo prepara a tese de acusação de um processo que envolve 44 réus. Ossos de um ofício que tem suas regalias. Como nas principais carreiras do Judiciário, os promotores (salário inicial de 13.000 reais bruto) têm sessenta dias de férias ao ano. Para chegar lá, Rômulo foi da faculdade para um curso preparatório e passou dois anos estudando até dez horas diárias.
 
André Valentim/Strana
Promotor Rômulo: choque com casos de violência após a posse
Maratona de estudo que a procuradora da República Patrícia Nunes, 28 anos, conhece bem. "Não saía, comia estudando e dormia quatro horas por noite." Ela está entre os dezessete dos 67 procuradores do Ministério Público Federal no estado que têm menos de 30 anos. Patrícia tomou posse em 2003 e já é coordenadora criminal da Procuradoria da República no Rio. Pelas suas mãos passam casos envolvendo mais de 5 bilhões de reais. Como os promotores estaduais, os procuradores oferecem denúncia à Justiça e acompanham processos. O que difere é a natureza do crime. A Justiça Federal julga, entre outras, causas que envolvem a União, autarquias, empresas públicas e crimes contra o sistema financeiro. Patrícia já enfrentou casos envolvendo lavagem de dinheiro, remessa ilegal para o exterior e tráfico internacional de drogas. O salário inicial de um procurador é de 18.000 reais bruto. "Sempre quis trabalhar voltada para questões públicas. Aqui me realizo", diz.
 
André Valentim/Strana
Ana Paula e Leandro: os mais jovens aprovados no último concurso da Defensoria
Ana Paula Teixeira Ferreira e Leandro dos Santos Guerra, os dois com 23 anos, experimentam o gostinho da primeira vitória. São os mais jovens aprovados no último concurso da Defensoria Pública. Foram 8.392 candidatos para 74 vagas. Mais da metade preenchida por candidatos com menos de 30 anos. "Um dos motivos da enorme procura é o fato de exigir apenas dois anos de prática forense", diz Laura Júlia Fontenelle, subcoordenadora do concurso da Defensoria. Vale, inclusive, o estágio no escritório-modelo de faculdade, e a colação de grau só precisa ser comprovada na posse. "Só espero que a greve não atrapalhe a colação de grau", afirma Leandro, que está concluindo o último período de direito na Uerj. E emenda: "A estabilidade conta. Um advogado tem a chance de ganhar muito, mas no início, muitas vezes, é 'boy de luxo' ". O salário inicial de um defensor é de 6.000 reais. "É a chance de mudar de status na pirâmide social do dia para a noite", diz Ana Paula, moradora da Penha, seis irmãos, filha de enfermeiros. "Um dia você não tem dinheiro para comprar livros, no outro pode ter um carro", compara. Ela pensa, no futuro, em fazer outro concurso.
 
André Valentim/Strana
Defensora Gabriela: destaque em uma das mais concorridas carreiras da Justiça
A Defensoria Pública é, para muitos, uma instituição de passagem. Mas para quem já está há alguns anos na carreira, como Gabriela Cavendish, 29 anos, empossada em 2002, a profissão tem grandes apelos. "Você tem a oportunidade de ajudar as pessoas nas mais variadas causas", comenta ela. A função de um defensor é prestar assistência jurídica gratuita. Gabriela já passou pela Vara Criminal de Bangu, pelo Núcleo de São João de Meriti e pela 2ª Vara Cível de Madureira. O volume de trabalho é enorme; levam-se processos para casa, mas o horário é flexível. Como em várias carreiras, não se bate ponto, e o servidor organiza seu horário. "Estudei muito para chegar aqui. Teve época em que nem atendia o telefone para não me desconcentrar", lembra. Ela fez três concursos até ser aprovada na Defensoria. Testar conhecimentos e nervos em provas faz parte da rotina dos aspirantes. "Nenhuma outra área tem um leque de opções tão amplo. Há instituições com dois concursos por ano", diz o presidente da OAB-RJ.
 
Felipe Varanda/Strana
Fábio Cesar, juiz federal: aprovado com apenas 24 anos em dois concursos
 
 
André Valentim/Strana
Dario, juiz federal: decisões sobre royalties de petróleo e hospitais
Nas provas, é preciso demonstrar conhecimento amplo do direito. A primeira fase do concurso para juiz federal, por exemplo, tem 100 questões. São cinco horas de prova – três minutos para cada questão. Depois, vêm as provas discursivas e a temida argüição oral. Um processo que se estende por um ano. Em quase todos os concursos, as perguntas são formuladas no dia da prova e os candidatos são identificados por números. "O concurso do Ministério Público é imune a fraudes", frisa o procurador-geral Marfan, rebatendo a polêmica em torno do último concurso da instituição. Dos 3.500 candidatos, só quinze foram aprovados, cinco deles com algum grau de parentesco com promotores. Concursos sempre envolvem tensão. "O candidato, além do conhecimento, tem de saber reagir em situação de pressão", avalia o juiz Fábio Cesar dos Santos Oliveira, 26 anos. Ele fez concurso para a magistratura federal na 4ª (sul do país) e na 2ª Região (Rio e Espírito Santo). Passou nos dois, aos 24 anos. Excelente aluno, saiu da faculdade e não freqüentou um cursinho preparatório. É exceção. No Rio existem em torno de trinta escolas voltadas para esses concursos. "Para passar é preciso ter método de estudo, força de vontade e orientação adequada", prega Zilma Incerti, coordenadora do curso Cepad, no Centro, um dos mais tradicionais. O Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Defensoria também oferecem preparatórios. Só a escola de magistratura, que funciona no Fórum, tem 800 alunos. Entre os candidatos, uma frase já virou lema: "Não se estuda para passar, mas até passar". Elaine Seixas, de 33 anos, sabe o que é isso. Depois de fazer publicidade, decidiu estudar direito de olho nos concursos. Formou-se há cinco anos, saiu do banco onde trabalhava e, desde então, faz concursos. No Rio, em São Paulo, Minas, Brasília e Bahia. "Disciplina é a palavra-chave", diz a jovem juíza Rosana. Pode até faltar um pouco de experiência, mas quem passa num concurso desses chega muito bem preparado. Justiça seja feita.
 
O país tem, em média, um processo a cada 10,2 habitantes. No Rio há um processo a cada 11,3 habitantes
Há 13 660 juízes em atividade no país. Desses, 73% atuam na Justiça comum. No Rio, a Justiça estadual tem 805 juízes
Fonte: Ministério da Justiça/Diagnóstico do Poder Judiciário
O custo de um processo na Justiça estadual do Rio é de R$ 3 737,00, mais barato apenas que no Amapá, Amazonas e Pará. A média nacional é de R$ 1 848,00
Fonte: Ministério da Justiça/Diagnóstico do Poder Judiciário
Em 2003, cada juiz da primeira instância da Justiça comum do Rio julgou 987 processos – uma média de 2,7 por dia. A média nacional é de 1 207 processos por juiz a cada ano
Fonte: Ministério da Justiça/Diagnóstico do Poder Judiciário
Os juízes federais brasileiros estão entre os mais bem pagos do mundo. De acordo com dados do Banco Mundial, os de primeira instância só ficam abaixo dos juízes canadenses, e os de segunda instância, de canadenses e colombianos
Fonte: Ministério da Justiça/Diagnóstico do Poder Judiciário
No Rio, a Justiça estadual gasta R$ 84,90 por habitante. A média nacional é R$ 60,73 (despesa da Justiça estadual pelo número de habitantes do estado)
Fonte: Supremo Tribunal Federal/Seminário "A Justiça em Números"



Fonte: http://veja.abril.com.br/vejarj/070606/capa.html 

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